O gênero e a alma
Artigo publicado na Revista Sophia: Ciência, Religião, Filosofia na Seção Sociedade de Set/Out de 2018 (Ano 16, Nº 75, pp. 26-29). Disponível em www.revistasophia.com.br
"Antes de nascer no mundo terreno, a alma repousa na bem-aventurança do mundo celestial, que é divino. Assim, aqui na Terra, a pessoa dotada de reminiscência, aquela que lembra ser uma alma, deseja cultivar a sua divindade, ou seja, sua essência"
Ou os casos de violência contra a mulher aumentam, no Brasil, ou eles são mais divulgados. O fato é que, a cada dia, vejo mais notícias sobre eles. É impressionante, pois, pelo menos nos meus 46 anos de vida, nunca houve tanta discussão e regulamentação sobre as questões de gênero e os direitos da mulher como hoje.
Parece uma contradição. Então eu fico me perguntando, em meio a isso, se não temos um problema de contrários. Será que a nossa sociedade tem um problema de gênero ou um problema de não gênero? Se for um problema de não gênero, nós temos um problema de alma, que é a parte humana que não tem sexo e não tem gênero. Depois de muito virar a cabeça, tenho a impressão de que estamos tentando resolver um problema pelo lado oposto. Nós temos mesmo é um problema de alma.
Temos coisas para refletir sobre toda a nossa história, nós, mulheres e almas. Mas vamos, aqui, pensar apenas sobre algumas coisas do supostamente “nosso” atual mundo, sobre o que dizem ser o “mundo feminino”.
Para começar, você já viu alguma revista que falasse sobre a moda das almas, sobre almas de um tipo ou raça, gordas ou magras, e suas circunferências ideais? Refiro-me àquele tipo de revista que a gente vê na fila do caixa de supermercado. Tudo o que vi, a respeito de almas, foi sobre almas boas ou más, mais nada, nem machos e nem fêmeas, nem tamanho de quadris e busto para elas poderem ser amadas.
É dito que, antes de nascer no mundo terreno, a alma repousa na bem-aventurança do mundo celestial, que é divino. Assim, aqui na Terra, a pessoa dotada de reminiscência, aquela que lembra ser uma alma, deseja cultivar a sua divindade, ou seja, sua essência. Desse modo, ela busca, na vida terrena, a paz e a harmonia.
A alma que esquece a sua proveniência identifica-se completamente com o mundo terreno e sua característica de ser palco para todos os tipos de drama dos quais ela escolhe participar. Para esses dramas terrenos acontecerem, é fundamental que existam, neste mundo, todos os tipos de diferenças possíveis. Por isso, aqui temos alegria, tristeza, saúde, doença, sucesso, fracasso, diversas raças e crenças, tipos psicológicos e físicos, tamanhos de quadris e busto, uma infinidade de contrastes. Acontece que no mundo das almas há poucas diferenças; então, lá predomina um sentimento de igualdade. Como já dissemos, a alma que tem memória da sua origem traz junto esse sentimento e combina-o com as diferenças daqui. A alma de pouca memória fica confusa neste plano das desigualdades.
Então vamos à pergunta que diz respeito aos fatos que destacamos no início, a violência contra a mulher. O que faz uma alma boa submeter-se, neste mundo, a circunstâncias que terminam em violência? Uma memória fraca, eu diria. Uma memória boa faria ela ir embora dali, tão logo pudesse, e ela descobriria muitas possibilidades de saída. Naturalmente, eu não estou falando daquele tipo de agressão súbita, inesperada, imprevisível, que acontece menos. Mas daquele tipo de agressão mais comum, que vai aumentando aos poucos, esquentando como em um caldeirão, em um banho que começa morno e termina em fervura escaldante.
“Poderíamos usar uma lógica mais simples, a lógica das almas. As empresas podem pagar o mesmo salário para as almas que exercem o mesmo ofício. Os cargos podem ser ocupados segundo as habilidades que as almas apresentam”
Posso citar muitos exemplos, dos mais gerais aos mais particulares, que envolvem esse esquecimento. Nos ambientes muito selvagens, a força física do homem predomina sobre a mulher. Ali, não há o que se argumentar, e o único remédio é a civilização.
Mas existem meios mais sutis que promovem a desigualdade no mundo terreno e, sobre esses, a reflexão é útil. Essa questão tem a ver com o treinamento que obscurece a memória a qual nos referimos. Treinamento que também é produzido pelos esquecidos.
Como bem explicam os textos sobre as questões de gênero, as pessoas, aqui, são adestradas em certas crenças. Essas crenças, a princípio, são como a água morna, aparentemente inofensivas. Por exemplo, você já ouviu dizer que o homem é infiel, ou ciumento e agressivo, e isso é “assim mesmo”? E que a mulher reclama “por natureza”? Pois acreditar que as coisas são “assim mesmo” é concordar com elas, permitir que continuem sendo. Nós somos condicionados por centenas de crenças que se tornaram verdadeiros pressupostos arraigados no fundo de nossas mentes, e somos tão mais governados por eles na medida em que não os percebemos como distintos das coisas do “mundo das almas”.
Vejam um outro exemplo. Dizem que as mulheres não são muito boas em ciências exatas, não são boas em Matemática. Como “falam muito”, são melhores em Letras. Do mesmo modo, não são boas em Estatística, e às vezes isso se confirma. É o que ocorre quando, na terceira decepção amorosa, a moça conclui os homens “são assim mesmo”. Hoje, somos cerca de sete bilhões de pessoas no mundo e metade deve ser de homens. Supondo que há três bilhões e meio de homens, uma amostra de três homens é pouco representativa, não acha? Não são poucos dados para concluir que eles “são assim mesmo”? Então é muito importante que todas essas crenças sejam questionadas. Quanto mais cedo essas crenças são introduzidas na mente, mais elas ficam arraigadas. Por isso há uma grande preocupação com as crianças.
O problema é que os adultos já esqueceram que as crianças há pouco chegaram do mundo das almas e estão menos esquecidas do que eles. Se as crianças pudessem simplesmente viver conforme sua própria memória, tudo estaria bem. Mas os adultos esquecem que são eles mesmos que atrapalham, então querem facilitar a vida dos pequenos. Daí temos problemas de tipos novos, como a questão de se o menino pode e deve brincar com bonecas, ou se ele pode mas não necessariamente deve brincar com bonecas.
Outra coisa que gera preocupação são as palavras, pois elas expressam poder. Veja bem: “a” xícara é uma palavra feminina, “o” pires é uma palavra masculina. Se a xícara fica em cima do pires, então temos uma hierarquia, o que pode ser um problema. Esse tipo de coisa dá uma discussão enorme, pois temos que rever todo o dicionário e a gramática. Gasta bastante tempo, e esse tempo é precioso quando as coisas “da alma” ficam esperando. A situação pode se complicar ainda mais, nesse mundo de crenças. Por exemplo, quando se diz que a mulher é “mais emocional” e deveria procurar “ser como o homem”, que é “mais racional”. Assim surge um jogo de imitação a respeito do que já não era muito autêntico. Essa tentativa de ajuste pode se aprofundar em uma dialética sofisticada, com muitos fundamentos teóricos, na qual, lá pelas tantas, ninguém mais se lembra de que é uma alma, absolutamente!
Minha sugestão, então, é: enquanto tentamos resolver toda essa complexidade, poderíamos usar, adicionalmente, uma lógica mais simples, a lógica das almas. As empresas podem pagar o mesmo salário para as almas que exercem o mesmo ofício. Os cargos podem ser ocupados segundo as habilidades que as almas apresentam. As tarefas e as despesas do lar podem ser divididas entre as almas que vivem na casa. As pessoas podem ser tratadas com igual respeito por serem, simplesmente, almas. Podem ser amadas como almas e, nessa ótica, negociar seus interesses. Podem ser atendidas na ordem em que a alma chegou na fila. As más condutas podem ser punidas porque foram praticadas por almas que agiram mal. Os direitos e as obrigações podem ser exigidos conforme é justo para as almas. Nada contra afirmar as diferenças, na minha opinião.
O problema ocorre quando, ao afirmar as diferenças, esquecemos daquilo que é igual e perdemos a paz e a harmonia em meio aos contrastes. Divulguemos, então, o empoderamento do não gênero. Para as mulheres, em particular, eu digo: se você está presa nessa teia que retratei, minha cara irmã, liberte-se lembrando de quem você é. E saiba que existem homens que também lembram de sua própria proveniência. Escolha bem as suas companhias. A alma, divina, é inteligente e não é escrava de seus hábitos emocionais. Pense nisso na hora em que disser que não é capaz de viver sem a corrente que fere os seus pulsos.
Autora: Cristiane Szynwelski é membro da Sociedade Teosófica em Brasília, escritora, psicóloga e advogada.